O DIREITO DE DEFESA NA SINDICÂNCIA DISCIPLINAR NO ÂMBITO DO EXÉRCITO BRASILEIRO
O devido processo
legal, em face do texto constitucional, pressupõe o contraditório (equidade de instrumentos, igualdade de meios e de
oportunidades mútuas ou recíprocas, porquanto inexistir defesa sem acusação), a
garantia da ampla defesa (por meio
de uma defesa técnica capacitada ou autodefesa) e o duplo grau de jurisdição (direito a um segundo veredicto, recurso à
instâncias superiores). Tanto a doutrina jurídica como a jurisprudência, também
são unânimes no que se refere à necessidade de se possibilitar as mais amplas
possibilidades de defesa ao acusado, sob todos os aspectos.
Qualquer ataque
contra esta ordem estabelecida é o suficiente para motivar a anulação do
processo, seja judicial ou administrativo, e, evidentemente, invalidar todas as
consequências que decorrerem do procedimento anulado ante a existência de
infração à ordem pública.
O contraditório é o
máximo direito de reação de todo àquele que vier a ser acusado de cometimento
de alguma presumida infração ou ilícito, possibilitando-se a todo cidadão, por
si próprio ou por seu defensor, contraditar (dizer contra) os que lhe acusam.
Inexiste devido
processo legal sem o contraditório, que, em linhas gerais, se constitui na
garantia de que em toda ação se oportuniza os meios necessários para que haja
uma correspondente reação, garantindo-se, assim, plenitude de igualdade de
oportunidades entre acusação e defesa.
Negando-se o direito
ao contraditório, também será negada validade à acusação. Quando o sindicante
ou encarregado não oportuniza ao acusado a chance para que expresse as suas
razões de contrariedade à acusação, estará agindo contra a ordem
constitucional, ensejando, assim, a decretação da nulidade dos atos disciplinares
decorrentes por inobservância ao devido processo legal.
O direito à ampla
defesa é princípio e garantia constitucional, portanto, de aplicação
automática, e só é reproduzido nos diversos ordenamentos infraconstitucionais
por seu caráter didático e balizador.
Assim, nos termos da
Constituição Federal de 1988:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LV – Aos litigantes, em processo judicial ou
administrativo e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes;”
O novo Regulamento
Disciplinar do Exército (R-4), criado pelo Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de
2002, também não descuida ao determinar:
“Art. 35. O julgamento e a aplicação da
punição disciplinar devem ser feitos com justiça, serenidade e imparcialidade,
para que o punido fique consciente e convicto de que ela se inspira no
cumprimento exclusivo do dever, na preservação da disciplina e que tem em vista
o benefício educativo do punido e da coletividade.
§ 1º Nenhuma punição
disciplinar será imposta sem que ao transgressor sejam assegurados o contraditório e a ampla defesa, inclusive o direito de ser ouvido pela autoridade
competente para aplicá-la, e sem estarem os fatos devidamente apurados.
No âmbito
do Exército Brasileiro, apesar de não ser este o meio previsto pelo Regulamento
Disciplinar para a apuração das infrações disciplinares (já que o RDE prevê um rito
sumário de apuração, mediante o preenchimento de um formulário próprio – FATD -
e estabelece quais são os meios de defesa), a SINDICÂNCIA acabou se tornando o principal
instrumento para a apuração dos ilícitos administrativos militares, sendo
garantido expressamente pela norma administrativa o direito do sindicado à
ampla defesa, inclusive prevendo a faculdade do sindicado em interpor um
advogado entre ele e a autoridade militar a que está subordinado.
A norma militar que
regula o processamento da Sindicância no âmbito da Força Terrestre (EB10-IG-09.001, criada pela Portaria Nº 107, de 13 de Fevereiro de 2012), além de destacar o
princípio dando-lhe capítulo próprio, simplesmente repete o texto
constitucional:
“Art.
15. A sindicância obedecerá aos princípios do contraditório e da ampla defesa,
com a utilização dos meios e recursos a ela inerentes.
Parágrafo
único. Para o exercício do direito de defesa será aceita qualquer espécie de
prova admitida em direito, desde que não atente contra a moral, a saúde ou a
segurança individual ou coletiva, ou contra a hierarquia, ou contra a
disciplina.
Art.
16. O sindicado tem o direito de acompanhar o processo, apresentar defesa
prévia e alegações finais, arrolar testemunhas, assistir aos depoimentos e
solicitar reinquirições, requerer perícias, juntar documentos, obter cópias de
peças dos autos, formular quesitos em carta precatória e em prova pericial e requerer
o que entender necessário ao exercício de seu direito de defesa.”
Portanto, também é
consenso que, uma vez prejudicada a defesa, em face da supressão de alguma das
oportunidades defensivas ou dos meios de reação possíveis ao acusado, restará
caracterizado o cerceamento da defesa, ensejando, inclusive, a anulação do
procedimento disciplinar.
Tolhendo-se a
oportunidade ao legítimo exercício do direito de defesa, ficará caracterizada a
nulidade do procedimento disciplinar, o que invalida também os atos punitivos
que o tenham tomado por base.
Por fim, relembrando a sábia lição do Prof.
José Armando da Costa[1]: “Tal quais as meias verdades transportadoras
de mentiras, a defesa pela metade se presta mais como instrumento de acusação
do que como esforço em benefício do acusado. Daí por que falar em ampla defesa
é, até certo ponto, cair em redundância. Defesa restrita não é defesa.”
Ademais,
como na prática vários comandantes militares, antes das alterações das
IG, já vinham mesmo dobrando os meios de apuração das transgressões
disciplinares, causando inclusive duplicidade de processos disciplinares sobre
o mesmo fato, em face justamente da dúvida causada pela existência de dois
modelos de apuração disciplinar (A SINDICÂNCIA regulada pelas IG-10-11 e
o FATD (formulário de apuração de transgressão disciplinar) previsto no RDE), o
Comandante do Exército então decidiu tornar obrigatória a utilização dos DOIS
instrumentos para a apuração das transgressões, e antes da imposição de
qualquer punição, uniformizando assim os procedimentos com a introdução das
novas regras, conforme restou disposto nas novas EB10-IG-09.001:
"Art. 37. Se por ocasião
da solução da sindicância for verificada a existência de fato que em tese
constitua transgressão disciplinar, antes da adoção de quaisquer medidas
disciplinares, é obrigatória a apresentação do Formulário de Apuração de
Transgressão Disciplinar (FATD) ao suposto transgressor, em conformidade com o
previsto no Regulamento Disciplinar do Exército."
Além
desta, são as seguintes as novidades introduzidas no procedimento de "sindicância”
com a edição das novas Instruções Gerais:
· Denúncias
apócrifas (sem identificação do autor), por si só, não autorizam a instauração
de sindicância. Tal providência também visa uniformizar os diversos
entendimentos que se tinha sobre a matéria, bem como acabar com a 'boataria' e
a perseguição sem justo motivo;
· A
possibilidade de ser dispensada a exigência da instauração de sindicância,
quando o fato ou objeto puder ser comprovado sumariamente mediante a
apresentação de prova documental idônea. Muita atenção na aplicação
desta regra: Aqui há um retorno ao antigo e superado conceito da 'verdade
sabida', autorizando a autoridade militar competente a deixar de apurar um fato
de sua competência, simplesmente porque este já estaria "provado"
mediante simples verificação de documentos tidos como "idôneos", o
que poderá ensejar causa de nulidade em razão da negação do direito
constitucional à ampla defesa;
· A criação
de um sistema nacional de numeração única das sindicâncias instauradas. O
aumento de controle sobre as sindicâncias instauradas deverá inibir também o
"engavetamento";
· O prazo
para o término da sindicância passou de 20 para 30 dias, contudo este deixou de ser um
prazo definitivo, uma vez que poderá sofrer prorrogações sucessivas, por até vinte dias corridos cada,
"desde que amparado em motivo de força maior, situação de complexidade ou
de extrema dificuldade" "a critério da autoridade nomeante". A
possibilidade de ocorrer o surgimento de sindicâncias que se arrastem
indefinidamente sem solução parece bastante real com esta nova regra dos
prazos;
· O
sindicante agora poderá ser oficial, aspirante a oficial, subtenente ou
sargento aperfeiçoado, de maior precedência hierárquica que o sindicado. Ampliado
que foi o rol de militares competentes a desempenhar o cargo, os
comandantes/chefes/diretores terão que promover uma ampla instrução para os
seus quadros, a fim de logo habilitar a todos para o exercício da função;
· O não
atendimento das notificações pelo sindicado não importam o reconhecimento da
verdade dos fatos nem a renúncia a direito. A ampla defesa é
garantia que se fortalece quando o procedimento não se sobrepõe ao direito;
· O
relatório do sindicante, contendo o seu parecer conclusivo sobre a elucidação
do fato, deverá ser apresentado em quatro partes: introdução, diligências realizadas,
parte expositiva e parte conclusiva. O desenvolvimento das
conclusões do sindicante por meio do relatório se tornará ainda mais preciso,
afastando incursões sofismáticas sobre matérias não tratadas na sindicância,
devendo favorecer soluções mais adequadas por parte da autoridade instauradora.
A referida norma, que estabeleceu um rito
processualístico para a condução da investigação disciplinar, possui
características semelhantes aos do direito processual penal, tais como: a
denúncia formal (parte escrita); a instauração de procedimento formal mediante
ato público (portaria); o indiciamento de pessoas (sob o rótulo de sindicado);
a clara referência aos princípios da ampla defesa e do contraditório; a
previsão expressa de oportunidades de defesa e a produção de provas; e,
principalmente, a possibilidade do sindicado constituir defensor (advogado) que
irá representá-lo durante todo o procedimento e possíveis recursos.
Não é surpreendente o fato de que o
procedimento de apuração das transgressões disciplinares assemelhe-se ao modelo
processual de apuração dos crimes. O Regulamento Disciplinar do Exército (Decreto Nº
4.346, de 26 de Agosto de 2002) descreve um número certo de
condutas como contrárias ao ideal disciplinar da instituição castrense,
sujeitando à punição disciplinar todo militar que não puder ou não quiser
observar as específicas normas, imitando, assim, o tratamento que se dá ao
crime, onde determinado comportamento, por encontrar-se definido pela lei como
sendo antijurídico e ilícito, sujeita o seu autor a uma pena, igualmente
prevista na legislação.
Porém, não há que se confundir a intenção
punitiva das penas criminais com a das penas disciplinares, pois que a
finalidade destas será sempre educativa e disciplinadora, enquanto que,
naquelas, trata-se de uma resposta do Estado em prol da segurança pública.
De Michel Foucault, trazemos a melhor
compreensão sobre a natureza da punição disciplinar.
“Mas a
disciplina traz consigo uma maneira específica de punir, e que é apenas um
modelo reduzido do Tribunal. O que pertence à penalidade disciplinar é a
inobservância, tudo o que está inadequado à regra, tudo o que se afasta dela,
os desvios. É passível de pena o campo indefinido do não-conforme: o soldado
comete uma “falta” cada vez que não atinge o nível requerido; a “falta” do
aluno é, assim como um delito menor, uma inaptidão a cumprir suas tarefas”.
Porto Alegre, RS, 25
de agosto de 2013.
Maurício
Michaelsen
Especialista em Direito Militar
OAB/RS 53.005
(51)3024-2900
[1] Da Costa, José Armando.”Teoria e Prática do Processo
Administrativo Disciplinar”. 4ª ed. Brasília-DF: Brasília Jurídica, 2002.
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